Sim, a Noruega É socialista

Sim, a Noruega É socialista


Esquerda e direita disputam a Noruega a tapa. Não é à toa, ela vive saindo no topo de todos os rankings de qualidade de vida.

A esquerda diz que é um país socialista, mas a direita não vai lhe dar esse gostinho. Não vai dizer que é de direita – todo mundo sabe que não é – então diz que é social democrata. Qual é a diferença?

O que é socialismo?

Essa é simples e incontroversa: uma economia socialista é uma em que os meios de produção são estatizados, i.e. estão sob o controle do Estado. Aqui já entra a primeira confusão: o significado de socialismo mudou ao longo dos tempos. O que Marx chamou de socialismo – o socialismo autoritário da URSS, da China, de Cuba, do Cambodia – chamamos hoje de comunismo. Isso é porque o partido socialista nos EUA chamava-se Partido Comunista, e o governo McCarthista fez a associação. Precisou-se então criar uma palavra nova para significar o comunismo de Marx – anarcocomunismo – e vagou um espaço no socialismo. Ao mesmo tempo, o que se chamava na virada do século passado de social democracia, i.e. o socialismo democrático de Lasalle e da Escola Fabiana, foi se aproximando progressivamente do liberalismo. Este também havia sido abduzido para significar laissez faire, coisa que os seus fundadores nunca defenderam (muito pelo contrário!). Um dos momentos derradeiros em que a social democracia deixa o socialismo, é quando o Partido Trabalhista britânico começa a se afastar da cláusula IV no seu estatuto:

“Assegurar aos trabalhadores braçais todo o fruto do seu trabalho, tanto o braçal quanto o intelectual, e a partir daí a distribuição mais equitativa possível baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, distribuição e comércio, e o melhor sistema possível de administração e controle popular de todas as indústrias e serviços.”

A cláusula foi escrita por Sidney Webb, um dos fundadores da Escola Fabiana, em 1917, no ano da revolução comunista na Rússia, e aprovada em 1918. Churchill perdeu as eleições de 1945 para o Partido Trabalhista, que então começou a colocar a cláusula em prática. Em 1946 estatizaram o Bank of England (banco central britânico, que até então era privado) e a aviação civil. Em 1947, as ferrovias, telecomunicações e a provisão de carvão, que supria 90% da demanda por energia. Em 1948 introduziram o National Health Service, no qual o SUS foi modelado, e estatizaram as estradas, o setor elétrico e os canais de transporte. Em 1951 estatizaram também a mineração, siderurgia e produção de gás. O Partido Trabalhista então perde as eleições de 1959, e seu líder no parlamento, Hugh Gaitskell, entendendo que teria sido a resistência à estatização que os derrubou do governo, começa a mobilizar o partido para rever a sua posição. Ele é vencido pela esquerda dentro do partido, e a cláusula só foi efetivamente ser retirada do seu estatuto 36 anos mais tarde, em 1995, num movimento liderado por Tony Blair, quando já era líder do partido.

img_54ef93a16d09aNeste interim, porém, social democracia deixou de significar socialismo democrático, para significar economia mista, e principalmente com um amplo Estado de Bem Estar. Curiosamente, porém, o Estado de Bem Estar é uma invenção liberal. Foi o Partido Liberal inglês, sob a liderança de David Lloyd George, que introduziu o Estado de Bem Estar na Grã Bretanha no início do século passado, primeiro com a seguridade social em 1908, depois as merendas escolares em 1909 e a saúde pública em 1911. Não só isso, como foi o próprio Adam Smith quem recomendou que o poder público subsidiasse a educação em escolas privadas. E isto equivale basicamente ao esquema que costuma-se associar hoje aos vouchers educacionais de Milton Friedman.

No outro aspecto, o da economia mista, a social democracia também se aproximava do liberalismo. A proposta de uma presença clara e definida do Estado na regulação dos mercados é dos liberais da Escola de Freiburg, da década de 30, auto-intitulados ordoliberais. Este é também o significado original de neoliberalismo, termo cunhado por Alexander Rüstow no Congresso de Lippman de 1938 (Hartwich, 2009), e que foi reiterado por Milton Friedman em 1951:

“Neo-liberalismo aceitaria a ênfase liberal do séc XIX na importância fundamental do indivíduo, mas trocaria o objetivo do laissez faire do séc XIX como um meio para este fim pelo objetivo da ordem competitiva. Buscaria usar a competição entre os produtores para proteger os consumidores de serem explorados por eles, a competição entre os empregadores para proteger os trabalhadores e os proprietários, e a competição entre os consumidores para proteger os próprios empreendimentos. O Estado fiscalizaria o sistema, estabelecendo condições favoráveis à competição e a evitar monopólios, fornecer uma fundação monetária estável, e aliviar a miséria e extrema pobreza. Os cidadãos estariam protegidos do Estado por um mercado privado livre; e um do outro pela preservação da competição.” (FRIEDMAN, Milton. Neo-Liberalism and its Prospects. Farmand, 17 fevereiro 1951, pp. 89-93.

Quando chegou em 1955, Friedman já havia mudado de ideia, e se convertido ao laissez faire, que ele mesmo havia criticado. E assim carregou consigo o termo para o seu novo ponto-de-vista. (Um parênteses sobre Milton Friedman. Friedman era um excelente marketeiro, que tomou para si crédito de uma série de ideias que não eram suas. Não só ele não deu crédito a Rüstow pelo termo neoliberalismo, nem tampouco a Adam Smith pelos vouchers, como também plagiou o imposto de renda negativo desenvolvido pela política liberal inglesa Juliet Rhys-Williams, integrado ao programa do Partido Liberal inglês em 1944, 24 anos antes de Friedman (re)propô-lo numa coluna da Newsweek em 1968, sem lhe dar o crédito. Mesmo o seu opus magnum, que lhe rendeu sua fama, Uma História Monetária dos Estados Unidos, parece ter sido escrito muito mais por sua coautora, Anna Schwartz, que se foi sem receber muito crédito, do que por ele. Friedman foi basicamente o Steve Jobs da Economia.)

Tendo o termo social democracia então se aproximado do liberalismo, e o socialismo totalitário encampado pelo comunismo, vagou o espaço no socialismo, que foi então preenchido pelo que era a social democracia da primeira metade do século passado, esta da cláusula IV do partido trabalhista. Este é o hoje o seu significado. Quando então perguntamos hoje se um regime é socialista, estamos perguntando se ele se aproxima do modelo do Partido Trabalhista inglês da primeira metade do século passado. Então perguntemos…

Então, a Noruega é socialista?

Há quem diga que não; que os países escandinavos são social democratas. Mesmo que se use o significado contemporâneo de social democracia, esta seria uma afirmação pelo menos 10 anos desatualizada. Nesta última década, a Suécia, por exemplo, privatizou uma série de serviços públicos, implantando os famosos vouchers educacionais do Friedman, que mencionamos acima. Os escandinavos se tornaram tão distintos que falar hoje de um modelo nórdico é como falar de um modelo sulamericano:

“Enquanto seus vizinhos flertam com com o livre mercado, a Noruega abraça o capitalismo de Estado. O seu campeão nacional petrolífero, a Statoil, é a maior empresa da região. O Estado norueguês tem grande participação na Telenor, a maior operadora telefônica do país, na Norsk Hydro, o maior produtor de alumínio, na Yara, o maior produtor de fertilizantes, e no DnBNor, o maior banco. É também dono de 37% do capital na Bolsa de Oslo, e também controla alguns gigantes de capital fechado, como a Statkraft, uma geradora elétrica, que se abrisse o capital seria a 3a maior empresa na Bolsa.” (The Economist)

Além disso, o Estado norueguês tributa 44% de toda a renda nacional, emprega 1 de cada 3 trabalhadores, e detém 96% do capital financeiro do país no seu fundo soberano. No seu artigo Norway Breaks Away with Social Democracy (“A Noruega rompe com a social democracia”), o autor sueco Nima Sanandaji paradoxalmente conclui:

“A Noruega ainda não adotou liberalização de mercados que promovam concorrência, redução do envolvimento do Estado na economia e políticas públicas de pleno emprego.” (SANANDAJI, Nima , Norway Breaks Away with Social Democracy, newgeography, 03/10/2013)

A verdade é que jamais existiu um Estado nacional democrático tão socialista quanto a Noruega. Isso não quer dizer que socialismo seja bom para qualquer circunstância, e funcione bem em qualquer lugar. Não faltam exemplos de países liberais tão bem de vida quanto a Noruega – Canadá, Austrália, Holanda… – como também não faltam exemplos de lugares onde o socialismo está dando errado, e.g. Venezuela. Talvez a boa gestão do regime seja um fator mais preponderante que o regime em si. O importante é poder fazer uma avaliação objetiva, e não tingida por preconceitos de que um modelo ou outro é intrinsecamente bom ou ruim, independentemente de qualquer circunstância. Isso seria transformar economia política em religião.

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FRIEDMAN, Milton, Neo-Liberalism and its Prospects, Farmand, 17/02/1951, pp. 89-93.

HARTWICH, Oliver Marc (2009), “Neoliberalism: The Genesis of a Political Swearword“, The Centre for Independent Studies, Occasional Paper 114, 21 May 2009.

NEWSWEEK, Milton Friedman on busting the school monopoly, 1968.

SANANDAJI, Nima , Norway Breaks Away with Social Democracy, newgeography, 3/10/2013.

THE ECONOMIST, The rich cousin, 2/02/2013.

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